sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Conto: No Mausoléu


Me faltam forças para me levantar dessa cadeira de rodas. Nervos ainda em frangalhos, uma mente que não aceita minha loucura como deveria, pois tenho certeza que estou louco. A sanidade me abandonou a tempos e fechando os olhos não vejo nada além de pesadelos constantes, infinitos.

O mundo de sonhos cessou a muitas eras, vivo em um pesadelo constante, um mundo no qual só encontro desespero e loucura. Se eu ao menos suspeitasse que além dos muros que cercam este mundo ainda existem outros que jamais deveriam ser escavados, vislumbrados, exumados de suas sepulturas podres e degeneradas por infinitas eras, hoje eu poderia ser novamente um homem ignorante e saudável.

A razão deste confinamento, esta prisão eterna da qual eu tenho certeza que jamais sairei em vida, foi um emprego. Um maldito emprego ao qual eu deveria ter recusado.

Haviam se passado dois anos desde meu último emprego. Todo auxílio que o governo, amigos, parentes e pequenos empregos esporádicos poderiam ter me oferecido já haviam esgotado. Na carteira restavam apenas algumas folhas de cheques sem fundos e moedas insignificantes. Foi quando ao ler o jornal vi a oportunidade batendo à porta e naquele momento de desespero eu à abracei com todas as minhas forças.

Eram oito horas da manhã de uma segunda-feira e vestindo meu melhor traje, exercitando minha melhor expressão facial, entrei no escritório do administrador do cemitério.

A proposta até que não era das piores. Eu trabalharia de segunda á sexta, das sete da noite ás sete da manhã, recebendo um salário pequeno, mas que seria o suficiente para pagar o aluguel atrasado, minhas contas de consumo e alimentação. Minha intenção era permanecer ali somente por alguns meses até que eu conseguisse um melhor emprego ou uma posição menos degradante do que a de Zelador Noturno. Por fim, após 20 minutos de conversa o emprego era meu.

Fui apresentado aos meus companheiros de trabalho e o velho zelador, um homem magro, de aproximadamente setenta e cinco anos, veio á mim para mostrar-me qual seria a rotina que eu deveria seguir diariamente.

O velho conhecido como “Sêo” Ibrahim era uma pessoa formidável e um tanto curiosa. Sua barba branca chegava até quase seu peito esquelético, que aparecia através da camisa branca desabotoada, seus olhos já opacos e cansado pareciam jamais piscar e suas mãos manchadas pareciam com mãos de múmias saídas de filmes de terror dos anos quarenta. Mancando e pendendo para seu lado direito o velho me conduzia pelas esquinas e alamedas na necrópole contando histórias de sua vida naquele local. Algumas pareciam fantasiosas demais, outras faziam minha espinha gelar, mas a maioria do que ele me falava era incompreensível, pois o velho falava com um sotaque terrivelmente complicado de se compreender e a idade fazia com que sua voz soasse para dentro de seu corpo em vez de projetá-la para fora. Eu fazia um tremendo esforço para poder ouvir o que o ancião tinha a me dizer sobre minhas obrigações como seu substituto.

Basicamente meu dever era rondar o cemitério em busca de irregularidades e corrigi-las. Tudo que estivesse fora do lugar eu deveria colocar em seu devido local e tudo que estivesse errado eu deveria intervir para corrigir. O maior problema era o vandalismo e os feiticeiros.

Nos primeiros dias tive que correr diversas vezes, madrugada adentro, atrás de marginais e casais que pulavam os muros do cemitério para roubar, vandalizar ou em busca de um local isolado para praticarem atos sexuais. Em alguns raros casos, tive que acionar a patrulha que fazia ronda na região, pois ladrões sepulcrais poderiam ser perigosos e eu não estava disposto á morrer para defender a morada dos mortos.

Após três meses trabalhando naquele local, todos os temores que á princípio me acometiam já havia se dissipado e no local do medo se instalara uma apatia e insensibilidade pela profissão que me tornava ainda mais eficiente em minha função.
Roubos e violações já haviam diminuído quase pela metade e elogios brotavam à meu respeito em todos os departamentos daquele local fúnebre.

Tudo parecia bem até aquela fatídica noite, aquela noite que não aconteceu. Talvez tenha sido á exposição constante à um local ao qual eu só frequentara pouquíssimas vezes em toda a minha vida, talvez fosse a superstição subconsciente que haveria aflorado sem minha solicitação naquele lugar, naquela noite, ou talvez eu seja somente louco e se assim o for eu agradeço à Deus. Meu maior medo é que a loucura não exista e que tudo tenha sido real. Se o que eu presenciei naquela noite for real eu preferiria já ter morrido ali mesmo, do que aguardar nesse asilo de doentes por uma morte lenta e terrível que se aproxima dia a dia á passos lentos e monstruosos, aguardando o momento certo para partir minha carne e dilacerar minha alma.

O que eu vi naquela noite me marcou como uma brasa de Dite, cravando fundo em minha alma um medo e um pavor cósmico e eterno, proibindo-me de ser normal mais uma vez.

Eu já havia afugentado alguns jovenzinhos que gostavam de invadir o cemitério para se embriagar e praticar orgias em locais sepulcrais, o que me dava uma imensa raiva. Não aceitava que pessoas pudessem sentir prazer em desonrar um lugar que deveria ser sagrado, era inaceitável. Às duas da manhã, no meio de uma ronda na parte mais baixa do cemitério, onde as alamedas eram mais estreitas e os túmulos velhos já eram velhos quando eu ainda não pensava em nascer, em um lugar onde os mausoléus não tinham mais nomes e as árvores não tinham mais forças para deixarem seus galhos altos, erguendo-se sempre em direção ao firmamento, eram todas imitações de salgueiros que em sua melancolia choram por aqueles que não mais vertem lágrimas, naquele lugar eu pude ouvir um cântico, uma música ritualística diferente de tudo o que já havia ouvido.

O que eu ouvia era uma ladainha repetitiva, em uma língua estranha e morta. Pensei se tratar de um feiticeiro de Candomblé, mas os sons não se pareciam nem um pouco com as cantigas de rodas de rituais africanos, era uma língua mais antiga, gutural, abominável. Eu não conseguia distinguir de onde vinha aquele som. Para todos os lados que eu olhava via somente trevas e em todas as ruas estreitas que eu entrava conseguia ouvir o som, sempre atrás de mim, como se me rodeasse, me perseguisse sem nunca revelar sua origem.

Aqueles sons pareciam perfurar meu corpo, indo cada vez mais fundo até atingir o âmago da minha alma, despertando um pavor desconhecido, um medo ancestral e diabólico que somente àqueles que já tiveram um vislumbre do mundo dos mortos poderia reconhecer.

O meu andar começou a ficar desordenado e quando percebi já corria desesperadamente pelas alamedas escuras, sem rumo, sem saber para onde ir ou porque eu corria com tanto desespero, querendo me afastar daqueles sons saídos de alguma coisa ou algo que não deveria pertencer a este mundo. Infelizmente minha fuga desvairada me levou para um túmulo que ficava em uma esquina, próximo a um barranco que levava para a parte mais antiga do cemitério, para túmulos esquecidos e ancestrais, onde nem mesmo vândalos ou jovens transbordando de hormônios ousavam ir. Naquele local o som ficava ainda mais alto e eu conseguia distinguir algumas palavras, alguns sons reconhecíveis, mas que ainda assim são difíceis de serem escritos. O cântico que o que quer que fosse aquilo entoava era aproximadamente dessa maneira: “We’anazath , We’anazath athat azif... Wea’anathaiadjiin Weaaa Anathaiadjiin! Weaaaaa Anathaiadjiin! Yaaaa Yaaa”

Somente de escrever essas palavras incompreensíveis meu sangue já gela, como se minha alma pudesse entender e temer o significado deste mantra, repetido sem cessar por uma voz que parecia saída de um demônio do mais profundo círculo do inferno.

Vi ao largo, em um mausoléu distante uma pequena fagulha, uma faísca que brilhava incessantemente, como a luz de uma vela em meio ás trevas. Dando á volta pelas ruas superiores fui me aproximando sorrateiramente do local. Carregava junto comigo, fora a lanterna, uma pá, à qual eu não temia usar como arma se fosse necessário e tudo parecia conduzir para essa solução. Ao me aproximar do antigo mausoléu vi um homem usando uma túnica púrpura, ajoelhado em frente à morada sepulcral. O homem entoava esses cânticos e fazia movimentos de adoração, conduzindo seu rosto ao solo e esticando seus braços venerando algo dentro do mausoléu. Em sua frente, no chão, havia um livro muito antigo, cujas páginas estavam carcomidas pelo tempo e pelas traças, e as páginas soltas eram apoiadas por uma pedra para que não voassem.

Aproximei-me lentamente e gritei com o homem. Ele me olhou, porém não consegui ver seu rosto, escondido nas trevas do capuz, auxiliado pela escuridão infernal que pairava naquela parte esquecida do cemitério. O homem se ergueu de maneira inumana, pegando rapidamente seu livro e embrenhou-se com uma velocidade descomunal, por entre os túmulos escuros desaparecendo na noite fria e sem luar.

Um breve momento de alívio tomou meu corpo, trêmulo e enrijecido pelo pavor e bem que eu queria ter dado meia volta, esquecido o ocorrido e nunca mais ter colocado meus pés naquela parte da necrópole, porém a curiosidade humana sempre é mais forte e nos coloca em situações prejudiciais, que nos conduzem quase sempre á perdição. Pois naquele momento eu estava pronto para dar meia volta quando ouvi, dentro daquele mausoléu, um ruído estranho que despertou minha curiosidade.

A vela que o estranho homem encapuzado havia colocado dentro do túmulo brilhava e dançava freneticamente enquanto uma sombra estranha ia se erguendo pelas paredes do túmulo. Cheguei à porta e um odor acre quase me derrubou. Meus olhos ardiam e o cheiro insuportável quase me fez recuar, quando através da dança de sombras dentro do Mausoléu pude perceber que lá dentro, nas entranhas da tumba, alguma coisa se mexia.

Peguei um lenço para tapar meu nariz, evitando o fedor que aumentava cada vez mais e fui lentamente, tremendo sem parar, me aproximando da porta do mausoléu. Quando lá cheguei, posicionei-me sob os umbrais do túmulo e olhei para baixo na tentativa de ver o que se mexia lá. Ainda hoje queria que Deus tivesse me poupado dessa decisão. Ao ver a coisa lá embaixo, iluminada por uma única vela, senti minhas pernas falharem, fazendo com que eu caísse sentado sob os umbrais, quase escorregando para dentro do túmulo, o que teria sido minha perdição.
Novamente fui tentar olhar aquilo e ainda é muito difícil conseguir descrever a minha visão, a visão da coisa e de sua mefítica metamorfose. O que eu vi era uma pústula imensa, do tamanho de um barril de cerveja, brotando da terra e inchando cada vez mais, como uma bolha cheia de imundícies, um líquido amarelo misturado com algo que parecia sangue humano. Aquele preenchimento me encheu de pavor e nojo, fazendo com que meu estômago já fraco com o cheiro insuportável que aquilo exalava falhasse por fim.

Terminei por vomitar na rua e decidi voltar para dar cabo daquilo, usaria minha pá para acabar com o aquela aberração, aquela imundície que um bruxo havia invocado naquela noite cheia de maldade e diabolismo. Quando olhei novamente para aquela bolha horrível notei que ela estava se deformando e tomando uma aparência mais reconhecível.

Dentro daquele tecido membranoso eu podia ver claramente vértebras se formando, o topo de um crânio humano se montando com suas peças separadas juntando-se em uma forma sólida. Músculos, veias e nervos se formavam perante os meus olhos dentro daquela monstruosidade.

Tão rápido quanto aquela metamorfose começou ela se encerrou. O tecido se partiu deixando um miasma vazar para a superfície o que quase me fez cair de costas no chão. Ainda tonto me rastejei até a entrada da tumba e pude ver sob a luz da velha um ser agachado, sua pele era branca como a neve e era possível ver seu sangue negro bombeando através de sua pele, num emaranhado de veias varicosas negras. Ele não tinha cabelo de fato, apenas poucos fios brancos colados em sua cabeça, umedecidos por um líquido aminiótico asqueroso.

Um arrepio começou a percorrer todas as fibras do meu corpo, mas o que aconteceu a seguir, o que me levou mesmo a loucura foi a atitude que àquele monstro tomou para o meu pavor. A criatura lentamente virou sua cabeça e por cima dos ombros me lançou um olhar que paralisou meu corpo e congelou minha alma, destruindo minha sanidade. Jamais me esquecerei daqueles olhos amarelados e leitosos, arregalados e sem pálpebras que me fitavam com a expressão da mais pura maldade, aquele nariz ausente que deixava somente um buraco no formato da cavidade nasal exposto, nem daquele sorriso sem lábios, um sorriso que expunha uma arcada dentária descomunal, humana e ainda assim não humana. Aqueles dentes pareciam pedras de pilões prontos para moer e destruir osso por osso do meu corpo.

Ao olhar dentro dos olhos da criatura eu soltei um grito descomunal. Um ruído gutural que vagou por toda a necrópole, despertando a curiosidade de todos que andavam pelas redondezas. Talvez seja isso que tenha salvado a minha vida.

Somente me lembro de dez dias após esse ocorrido ter acordado em uma instituição psiquiátrica, amarrado à minha cama. Os médicos me informaram que fui encontrado caído de costas em frente ao mausoléu, estático, catatônico e com os olhos arregalados. Por sete dias eu gritava sempre que os relógios marcavam duas horas da manhã e assim permanecia por horas até que meu desespero se tornasse em uma expressão de vazio e horror como eles nunca haviam presenciado. As enfermeiras constantemente untavam meus olhos com uma pomada especial, pois eu não os fechava jamais. Nos últimos três dias antes que eu acordasse para o mundo da lucidez eu dormi, mas os pesadelos que eu tive pareciam ter um conteúdo aterrador, pois segundo as enfermeiras e os médicos, eu passava minhas noites me debatendo e me digladiando com uma criatura invisível, fruto de minha mente perturbada.

Contei-lhes sobre o ocorrido, sobre a noite infernal e o demônio nascido diretamente do ventre da mãe-terra, mas eles riram de mim. Disseram não se passar de delírios pós-traumáticos, provavelmente pesadelos dos últimos dias em que finalmente consegui pegar no sono. A polícia vasculhou todo o cemitério em busca do meu agressor, mas nada foi encontrado. Somente uma velha acesa dentro daquele velho e maldito mausoléu.

Nem mesmo um nome havia no local para determinar à que família ele pertencia, mas eu sabia que aquele ser pertencia a outro mundo, a uma outra esfera onde o horror e a loucura reinam inalienáveis e devorando a mente e almas daqueles que ousam atravessar seus umbrais ou invocar seus filhos selvagens.

Desde que acordei mesmo sobre a influência de toda a medicação disponível eu não consigo alcançar a paz. Sempre que fecho os olhos eu vejo àquela criatura me olhando, sorrindo com seus dentes podres e desalinhados, aguardando o momento certo para levar-me consigo para dimensões além deste espaço, para reinos onde eu desejaria estar morto e a morte seria apenas uma lembrança querida.

Hoje eu li os jornais. Eles noticiam mortes estranhas na cidade, onde pessoas eram encontradas mortas sem carne, somente suas ossadas, frescas e limpas da carne, sangue e pele, eram encontradas em locais públicos como parques e praças. Ninguém jamais presenciara os assassinatos ou tivera um vislumbre de quem ás matara, mas infelizmente eu sei quem ou o que foi.

Seja quem for que invocou aquele ser terrível, com certeza não pode controlá-lo. Só quem, como eu fitei os olhos da besta sabe que o monstro era crueldade pura. Talvez eu tenha sido poupado somente por não estar na lista daqueles que deveriam ser mortos por ele, mas sinto no âmago da minha alma que ele só aguarda estar livre do pacto ou o que quer que seja que ele tem com aquele bruxo encapuzado, para vir atrás de mim. Eu sinto sua presença cada vez mais perto, como o som daquele cântico que me conduziu à perdição naquela noite amaldiçoada.

Enquanto a besta vaga livremente devorando a carne e a alma de pessoas inocentes eu fico aqui trancafiado nessa cela de hospício, aguardando a minha vez, a minha hora de ser devorado pela besta e voltar novamente para o ventre da criação, o útero da mãe-terra.

Nenhum comentário: